quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A dor é democrática, mas a memória é seletiva

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A Urda Klueger além de ser a melhor cronista do Brasil que nossa imprensa não tem (bem feito!), é anarco-bolivariana da linha radical e pró-África, apesar da aparência física de líder luterana.

Urda é mestra em história e doutora em geografia (ou vice-versa), com notável especialização em comunicação com cães e crianças e impressionante interação com o ser humano em geral, ainda que apresente reações alérgico-olfativas na relação com exemplares de determinadas classes do topo da pirâmide social.

O Pouso da Poesia orgulha-se de hospedar esta celebridade sempre que vem à Florianópolis, acompanhada do nietzschiano Atahualpa, seu cão.

Entre outras atividades ébrio-clandestinas, o Pouso da Poesia também distribui por reembolso postal todas as publicações da Hemisfério Sul, a editora da Urda, com aproximadamente 30 títulos em circulação e alguns esgotados. São obras dos melhores autores catarinenses, entre as quais se incluem romances, contos, crônicas e reportagens desta comovente escritora de quem, adiante, oferecemos uma amostra para breve degustação:

Raul Longo(*)

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Se a gente não esquece o gol de Gighia...

Na segunda metade do século XIX , o segundo país mais poderoso do mundo era aqui na América do Sul. Duvidam? Peguem um bom livro de História das Américas e dêem uma olhada. Era um país onde as coisas funcionavam com a sincronia de um relógio: cheio de indústrias, inclusive metalúrgicas e as demais consideradas de ponta naquela época, e qualquer cidadão daquele país de um momento para outro de agricultor ou industriário se transformava em soldado, e o país tinha um exército impressionante. Dou um chicletes para quem adivinhou o nome do país: o Paraguai.

A maioria de vocês levou um susto, não levou? Foi bem isto que a primeira potência do mundo da época, a Inglaterra, levou, quando se deu conta que cá num lugar perdido na América do Sul, alguém tinha passado a fazer sombra a ela. O susto foi tão grande que ela maquinou rapidamente, e botou nós, brasileiros, mais os argentinos e os uruguaios numa guerra contra o Paraguai, onde, pode-se dizer, aquele país foi destruído. Uma geração inteira de homens morreu - os números e as crueldades são impressionantes. Até hoje aquele pequeno país que já foi tão grande não conseguiu se reerguer, e o brasileiro tem a mania de morrer de rir de tudo o que é do Paraguai, como se tudo o que viesse de lá fosse coisa inferior. Uma vez, quando lá, sentei-me uma tarde inteira numa praça, a ouvir alguns paraguaios falarem da sua mágoa do Brasil, não magoazinha boba, nascida de piadas bobas – mágoa séria, coisa de quem teve seu país destruído há mais de um século. Então voltei e contei aqui, e alguém ficou muito escandalizado e me disse:

- Mágoa? Mas de que? Já faz mais de cem anos!

Então vamos a um outro exemplo: pegue algum menino brasileiro, talvez lá dos seus 12 anos, e lhe pergunte se já houve Copa do Mundo aqui no Brasil. Todos eles sabem, sabem que foi em 1950 no Maracanã, sabem que perdemos no último minuto.

- E quem fez o gol? – pergunte ao menino.

- Um tal de Gighia.

- E foi triste para o Brasil?

Se foi? As crianças do Brasil parecem nascer sabendo tim-tim por tim-tim o que aconteceu lá naquele dia de 53 anos atrás, e eu, além de também ter sabido desde pequena, ainda tive o privilégio de saber do que aconteceu da boca de alguém que estava lá no dia: o nosso saudoso poeta Marcos Konder Reis estava, e não sei como seu coração não se partiu. Lembro-me como ele contava:

- Podia-se ouvir uma mosca voando dentre as 150.000 pessoas, depois do gol. Ninguém se mexia. 150.000 pessoas choravam em silêncio.

Não há como não se dizer que, depois de mais de meio século, o povo brasileiro esqueceu-se daquele gol que o Uruguai fez no finalzinho do segundo tempo do final da Copa de 50, em pleno Maracanã. E foi só um golzinho. E se fosse uma mortandade terrível, a destruição de uma geração e de um país? Será que a gente esquece coisas assim? Será que o Paraguai esqueceu? Com certeza não esqueceu. Ele usa da sua zona franca para se apoderar de um pouquinho do nosso dinheirinho, e você vai lá e pensa que está agradando. Bobagem sua. Vá lá com tempo, sente-se numa praça e ouça o que o povo paraguaio sente pelo Brasil. Se um golzinho de nada a gente não esquece...

Então, que vamos nós pensar, esperar, imaginar sobre o Iraque? Por duas vezes em 12 anos ele é invadido e humilhado do jeito que a gente vê todos os dias na televisão. Lembro uma cena terrível da primeira invasão: soldados iraquianos sendo trazidos prisioneiros por soldados estadunidenses, e tentando agradá-los dizendo: “Bush! Bush!” e fazendo sinal de positivo. (Era o Bush Pai, ainda). Aquilo era uma humilhação que uma pessoa jamais vai esquecer na vida. Adular seu algoz tentando falar bem do Chefão... Nem uma pessoa nem um país não esquecem. E ontem ainda vi na televisão cena de casa sendo invadida na calada da noite pelos estadunidenses, que aproveitaram para ir quebrando tudo. Quantos séculos serão necessários para as emoções entrarem nos eixos por lá, se a gente não consegue esquecer aquele mero gol de Gighia?


Blumenau, 21 de Novembro de 2003.

Urda Alice Klueger

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(*)Raul Longo, jornalista, escritor e pousadeiro, é colaborador desta nossa Agência Assaz Atroz

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