Carlos Alberto Lungarzo
A Sinceridade do General
No dia 04/02/2010, o general Cerqueira Filho foi sabatinado numa Comissão do Senado Brasileiro, como aspirante a uma vaga num Tribunal Militar. Durante o colóquio com os senadores, afirmou, segundo a imprensa:
“Gays não têm trabalho compatível com as Forças Armadas. O indivíduo não consegue comandar o comando em combate, tem uma série de atributos e fatalmente a tropa não vai obedecer. A tropa não obedece indivíduos desse tipo [sic]. Estou sendo sincero na minha resposta”
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u689437.shtml
Quiçá ele esteja certo ao pensar que a tropa não levaria a serio um superior gay durante um combate. No entanto, apesar de ser sincero, será difícil demonstrar isto, pois ele nunca deve ter visto militares combatendo salvo contra civis torturados, ou contra povos sem defesa como o do Haiti. Mas, o raciocínio parece verdadeiro. A moral sexual no Brasil é imposta pelas castas conservadoras e confessionais, que nada têm a ver com a famosa diversidade do povo. Há uma sensação (especialmente nos que somos estrangeiros) de que o Brasil nutre menos preconceitos que outros países da região, mas essa sensação está aumentada pela sensualidade tropical.
Ora, é evidente que o general acha que a insubordinação contra um superior gay, caso acontecesse, seria correta. Com efeito, a tropa conhece seus superiores durante a vida de caserna e teria descoberto que seu comandante era gay antes da imaginária batalha. Então, os oficiais de maior patente teriam podido apreciar a desobediência dos soldados. Não é isto evidente? Seria raro que apenas no campo de batalha, o coronel do regimento descobrisse que uma companhia não obedece a um tenente por ser gay. Conhecendo esse fato desde antes, o coronel deveria educar sua tropa, e explicar que a diversidade merece respeito. Também avisaria que os reincidentes receberiam uma punição com propósito educativo. Mais cedo ou mais tarde, oficiais superiores sem preconceitos acabariam educando soldados e militares, mostrando-lhes que a orientação sexual é um direito individual inquestionável.
Mas, por que o general não pensou nisto, em vez de insinuar que comandantes gays são “irrecuperáveis”? Simples. Porque os Direitos Humanos não são valores para Forças Armadas, salvo em 6 ou 7 países evoluídos. Aliás, desde o começo da história, as FFAA de qualquer natureza foram instituições criadas, treinadas e utilizadas para combater esses direitos com seu maior afinco. Esta reflexão mostra um paradoxo na luta contra a homofobia.
Um Paradoxo dos Direitos Humanos?
Um direito humano tradicional é a igualdade. Dito de maneira rápida e simplista:
A igualdade de direitos é a capacidade das pessoas para ocupar lugares na sociedade com base nas suas aptidões, sem dependência de gênero, idade, raça, língua, ideologia, crença religiosa, orientação sexual, cor, aparência física, nível econômico, saúde, etc.
Vejamos agora o paradoxo: Apliquemos a definição de igualdade ao caso das FFAA e de aspirantes gays. Suponhamos que um gay é rejeitado pelas razões aduzidas por Cerqueira. Então, o rejeitado poderia se queixar da violação do direito humano à igualdade.
Hmmm! É assim mesmo? O gay discriminado reclamaria, em nome dos DH, de uma decisão que lhe impede entrar numa instituição cuja finalidade é violar todos os DH. Isto é uma contradição, um paradoxo.
Forças armadas de diverso estilo existem desde o começo da humanidade, e as causas que geraram sua existência são ainda confusas para os pesquisadores. Mas é claro que sempre promoveram guerras, genocídios, mutilações, torturas, estupros, incêndios, desolação e morte. Seja para atacar, seja para defender-se, o assunto é que violaram tudo o que hoje chamamos DH ao longo dos milênios. Além disso, os exércitos organizados baseiam seu poder na renúncia a pensar, na aceitação de ordens como as aceitaria uma máquina, e na superstição e na crença em valores metafísicos e misteriosos: a linhagem, o sangue, a terra, a raça, a fé, o valor da espada, a glória de morte, etc.
Não todas as FFAA são iguais. Há algumas poucas em que as tarefas de seus membros são quase civis, mas elas são raridade mesmo na Europa. Fora desses casos, todas compartilham valores negativos que não foram criados pelo capitalismo. Os exércitos medievais, unidos solidamente com a Igreja, foram os mais cruéis da história. Alguns exércitos modernos de países não capitalistas, como os de Stalin e Mao, cometeram tantos abusos como seus colegas imperialistas. Podem encontrar-se atrocidades, aberrações e fetichismos (não idênticos, porém similares) nas tropas coloniais, nos exércitos anticoloniais e nas FFAA de governos liberais.
Quanto a discriminação de cidadãos GLBT’ s nas FFAA, há uma crescente dúvida nos países com grandes movimentos antimilitaristas (como UK) ou pequenos movimentos muito ativos (como EEUU): Faz sentido que os gays insistam em ingressar nos exércitos?
Várias ONG’ s acham que o slogan “Deixem os gays entrar” implica uma visão complacente com o destrutivo aparato militar. Vide: www.ekklesia.co.uk/node/10424
O escritor e jornalista nova-iorquino Bryan Farrell colocou esta questão em termos enérgicos. Ele disse que atingir a igualdade para entrar nas FFAA significa atingir “cumplicidade na exploração dos cidadãos pobres, na morte de famílias inocentes e na destruição de sociedades completas”. E acrescenta uma pergunta incisiva: “Será que nosso país seria melhor se permitisse que os homossexuais também lançassem bombardeios esmagadores?”
Peter Thatchell, famoso parlamentar da esquerda do Commonwelth (que tentou derrubar por uma ação revolucionária a primeira ministra britânica Margareth Thatcher), ativista de DH e dos direitos dos animais, pacifista e ecologista, sustenta a mesma posição:
“Devemos nos opor à discriminação [...contra] gays e lésbicas no exército, mas eles deveriam ser mais críticos e perguntar-se por que querem ser parte de uma organização que comete todo tipo de grandes violações dos DH”. E acrescenta: “A exigência de direitos deve ser uma crítica, com discernimento. Não pode ser irreflexiva.”
A Saga Homofóbica
Pelas reflexões acima, parece que a homofobia dos militares brasileiros não é tão ruim. Por quê? Por que, quando se barra a entrada de um gay, ele está sendo afastado de uma instituição nociva, e talvez isso torne mais humanas suas escolhas futuras.
Mas, este raciocínio não é coerente. A rejeição de gays nas FFAA está fundada numa homofobia geral, e não num desejo de “protegê-los da tropa”. A homofobia dos militares seria igual em qualquer outro contexto. Eles tampouco aceitariam gays como bombeiros, agentes de resgate, guardas municipais, etc.. Então, esta homofobia é geral e deve ser combatida.
Aliás, meia dúzia de exércitos europeus tem democracia interna, não praticam atrocidades, e até permitem a criatividade. Nesses casos, a discriminação impediria a um cidadão obter um emprego que pode ser normal. Mas, na América Latina ocorre exatamente o oposto: entrar nas FFAA é como candidatar-se a um emprego de carrasco ou torturador, sem o escândalo que causaria um edital para concurso de “aplicador de choque elétrico e noções de pau-de-arara”.
Então, a homofobia não pode ser combatida de maneira isolada de outras violações aos DH. Não podemos criticar a discriminação no emprego e, ao mesmo tempo, considerar natural a guerra, a mais patológica, insana e sádica violação dos DH. A homofobia deve ser combatida junto com o militarismo. No caso em apreço, combater a homofobia não significa favorecer o ingresso das pessoas discriminadas no exército, pois isto não é ação afirmativa, mas ação negativa. Significa denunciar a casta militar como discriminatória e preconceituosa.
A palavra de ordem não deveria ser: “queremos gays nas FFAA”, mas, “queremos um mundo sem FFAA e sem discriminação homofóbica”. Enquanto isso, os jovens GLBT deveriam cultivar seu espírito humanitário e deixar de pensar nas FFAA como uma opção. É preferível ter um emprego ruim ou estar desempregado do que tornar-se cúmplice de massacres como as de Araguaia, como as da Cité du Soleil, e como talvez aconteçam nas reservas indígenas.
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Carlos Alberto Lungarzo foi professor titular da UNICAMP até aposentadoria e milita em Anistia Internacional (AI) desde há muitos anos. Fez parte de AI do México, da Argentina e do Brasil, até que esta seção foi desativada. Atualmente é membro da seção dos Estados Unidos (AIUSA). Sua nova matrícula na Organização é o número 2152711. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
Ilustração: AIPC – Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA
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